O galo de Chagall O dia amanheceu enevoado e os cantos dos pássaros eram luzes coloridas que se acendiam e apagavam no ar cinzento. Um pintassilgo pousado numa árvore próxima iluminou-lhe o quarto com os tons do arco-íris. Chagall despertou. Era um homem baixo, com cabelos pretos ondulados, olhos escuros e um nariz imponente. Depois de se vestir e comer algo, saiu de casa e foi ter com o seu melhor amigo. Era um galo gigante com penas azuis, verdes, amarelas e vermelhas. O seu corpo era macio como a seda; a crista parecia uma estrela flamejante; os olhos eram celestiais. Mal o viu, o galo adivinhou que iriam fazer uma viagem. - Onde vamos hoje? - Vamos dar umas voltas sobre a aldeia para me inspirar para o próximo quadro. - Então, monta. Chagall subiu para o dorso do galo e este começou a correr e a bater as asas até levantarem voo. À medida que se afastavam da casa e ganhavam altitude, o nevoeiro começava a dissipar-se. Por entre fiapos de vapor de água apareciam campos, árvores, casas e um rio onde um par de namorados passeava de barco. Um mosaico de cores e formas. Agarrado ao pescoço do galo, Chagall observava atentamente a realidade vista daquela perspectiva. - Gostei muito do teu último quadro, aquele onde transporto uma mulher que me abraça – diz o galo. - É um arlequim… - Pouco interessa quem é, o importante é teres conseguido mostrar a essência do amor. - É tudo o que me interessa na pintura… - Um amor que envolve os homens, os animais e a natureza. É o amor pela vida, por tudo o que existe. - E o símbolo desse amor supremo és tu, galo, não os seres humanos. - És diferente dos outros homens, consegues perceber que nós, os animais, somos criaturas espirituais. - Infelizmente, a religião tem uma opinião diferente. Deus… - Deus…, há muito que desejo falar com ele… - Eu falo com ele todos os dias. - E ele responde-te? - Bom, envia-me sinais e eu pinto-os… - Sinais? Isso para mim não seria suficiente. - Então por que não tentas falar com ele? Talvez ele te responda. - E como faço isso? Nunca me ensinaste a rezar… - Concentra-se e pensa nele, é uma oração universal. O galo fecha os olhos e chama por Deus. Pouco depois, ouve melodias e cantos de anjos, luzes coloridas cintilam à sua volta. Então, do nada, Deus aparece. O sol brilha mais forte e expulsa a réstia de nevoeiro. Chagall e o galo não parecem surpreendidos. Lado a lado, os três sobrevoam a aldeia. A voz de Deus é doce como a de uma criança. - Galo, queres saber porque os animais não têm alma? Os olhos azuis do galo dilatam-se. - É injusto. Se os homens, que tantas barbaridades já cometeram, a tem, por que razão os animais, que apenas tentam sobreviver, foram privados dela? Deus sorri. - Criei os homens à minha imagem e semelhança, logo foram os únicos seres a quem pude conceder a imortalidade. O galo eriça a crista. - E quem te criou a ti? Deus solta uma gargalhada. - Ninguém. Eu sempre existi. O galo volta o pescoço e lança um olhar trocista a Deus. - E se estiveres enganado? E se alguém te criou à sua imagem e semelhança? Deus acelera e ultrapassa o galo. Responde-lhe com uma voz grossa, sem olhar para ele. - És um galo muito atrevido. Nem sei como deixaram os teus antepassados entrar na arca. O galo acelera também, a crista dobrada pelo ar, e coloca-se ao lado dele. - E tu és um Deus muito susceptível e pouco convincente. De repente, surge um anjo vermelho com cauda e chifres. Faz piruetas e acrobacias aéreas, esticando e encolhendo o corpo como um fole. Usa uma voz feminina sedutora. - Galo, eu posso conceder-te uma alma. Deus foi realmente injusto contigo, mas se vieres comigo serás imortal. Deus sopra e o diabo é projectado alguns metros. - Não lhe dês ouvidos, galo. Já foste imortalizado através da arte. Serás recordado para sempre nos museus e nos livros pelas pessoas cultas. O Diabo dá uma gargalhada. Da sua boca escapa-se uma língua bífida verde semelhante a uma serpente. - Eis um conceito de imortalidade digno dos antigos egípcios. Só falta seres embalsamado. Galo, ele continua a pensar que és uma besta estúpida. Ele é o deus dos homens, os animais precisam de um amigo verdadeiro. Entretanto, juntam-se ao grupo um pequeno homem vestido de preto com um violino e um bode verde com uma flauta. Tocam e dançam músicas tradicionais judaicas como se estivessem numa festa. Flores cor-de-rosa brotam à sua volta parecendo um fogo-de-artifício. O Diabo solta chispas lilases pelos olhos. Ergue duas mãos peludas na direcção do homem do violino. - Ei, parem com isso. Estão a distrair o galo. O bode verde marra contra os chifres do diabo e ouve-se um estalido seco. - Não, estamos a distrair-te a ti. Na verdade, viemos salvar o galo e expulsar-te porque sabemos que odeias música. De repente, Chagall intervém. - Já vi isto nalgum lado... Deus respira fundo. - Um homem, um galo, o diabo e eu próprio a sobrevoarmos uma aldeia, até parece que vai acontecer uma parábola bíblica… O diabo franze a testa e torce o nariz. - Recuso-me a participar, faço sempre figura de tolo nessas parábolas idiotas. Chagall coça o queixo. - É como se estivéssemos num quadro, como se fossemos personagens de uma história narrada por imagens. Deus passa a mão nos cabelos brancos e respira fundo. - Mas se não és tu o pintor, quem poderá ser? O galo inclina as asas num voo oblíquo e as cores das suas penas resplandecem à luz do sol. Depois afasta-se do grupo, executa um looping, olha para um ponto que nem Chagall, nem Deus, nem o diabo conseguem ver e pisca-nos o olho azul. ** Chagall's Rooster The day dawned foggy and the birds' songs were like colourful lights in the gray air. A goldfinch, perched on a nearby tree, lit up his room in rainbow tones. Chagall woke up. He was a short man with wavy black hair, dark eyes and an imposing nose. After getting dressed and taking breakfast, he left the house and went to his best friend. It was a giant rooster with blue, green, yellow and red feathers. Its body was smooth as silk; the crest looked like a flaming star; the eyes were heavenly coloured. As soon as he saw him, the rooster guessed they were going on a trip. - Where are we going today? - Let's take a walk around the village to inspire me for the next painting. - So ride. Chagall climbed onto the rooster's back and it started running and flapping its wings until they took flight. As they moved away from the house and gained altitude, the fog began to lift. Between streams of water vapour appeared fields, trees, houses and a river where a pair of lovers went for a boat. - I really liked your last painting, the one where I carry a woman who hugs me - says the rooster. - It's not a woman. He’s a harlequin ... - It doesn't matter who it is, the important thing is that you've managed to show the essence of love. - It's all that interests me in painting ... - A love that embraces men, animals and nature. It's a love of life, a love for everything that exists. - And the symbol of that supreme love is you, my rooster, not human beings. - You're different from other men, you can see that we animals are spiritual creatures. - Unfortunately, religion has a different opinion. God… - God…, I have wanted to talk to Him for a long time… - I talk to Him every day. - And He answers you? - Well, He sends me signals and I’ll paint them ... - Signals? That wouldn't be enough for me. - Then why don't you try to talk to Him? Maybe He'll answer you. - And how do I do that? You never taught me how to pray ... - Focus and think about Him, it's a universal prayer. The rooster closes its eyes and calls out to God. Soon after, he hears melodies and chants of angels, coloured lights flicker around him. Then, out of nowhere, God appears. The sun shines brighter and expels the streak of fog. Neither Chagall or the rooster seem surprised. Side by side, the three fly over the village. God's voice is sweet as a child's. - Rooster, do you want to know why animals have no souls? The rooster's blue eyes widen. - It's unfair. If men, who have committed so many barbarities, have it, why are animals, which are just trying to survive, deprived of it? God smiles. - I created man in my own image and likeness, so they were the only beings to whom I could grant immortality. The rooster raises its crest. - And who created you? God lets out a laugh. - No one. I have always existed. The rooster turns its neck and gives God a mocking look. - What if you're wrong? What if someone created you in his image and likeness? God accelerates and overtakes the rooster. Without looking at him and lowering his voice, he answers. - You are a very bold rooster. I wonder they let your ancestors enter the ark. The rooster accelerates too, the crest folded through the air, and stands beside God. - And you are a very susceptible and unconvincing God. Suddenly, a red angel with a tail and horns appears. He does pirouettes and aerial acrobatics, stretching and shrinking his body like a bellows. He uses a seductive female voice. - Rooster, I can grant you a soul. God was really unfair to you, but if you come with me you will be immortal. God blows and the devil is projected a few metres. - Don't listen to him, rooster. You have already been immortalized through art. You will be remembered forever in museums and books by educated people. The devil laughs and a green snake-like bifid tongue escapes from his mouth. - The kind of immortality believed in by the ancient Egyptians? And will they embalm you too? Rooster, He still thinks you're a stupid beast. He is the god of men. Animals need a true friend. Meanwhile, a small man dressed in black with a violin and a green goat with a flute join the group. They play and dance to traditional Jewish music as if they were at a party. Pink flowers sprout around them like a firework. The Devil's eyes discharge lilac sparks . He raises two hairy hands towards the man with the violin. - Hey, stop it. You're distracting the rooster. The green goat slams against the devil's horns and a dry crackling sound is heard. - No, we're distracting you. In fact, we came to save the rooster and expel you because we know you hate music. Suddenly, Chagall intervenes. - I've seen this somewhere ... God takes a deep breath. - A man, a rooster, the devil and myself flying over a village, it seems that a biblical parable is about to become a reality… The devil frowns and wrinkles his nose. - I refuse to participate, I always make a fool of myself in these stupid parables. Chagall scratches his chin. - It's as if we were in a painting, as if we were characters in a story told by images. God runs his hand through his white hair and takes a deep breath. - But if you are not the painter, who might you be? The rooster tilts its wings in an oblique flight and the colours of its feathers shine in the sunlight. Then he leaves the group, loops, looks at a point that neither Chagall nor God nor the devil can see, and blinks at us with his blue eye. João Cerqueira, edited by Paul Harris João Cerqueira holds a PhD in Art History. He is the author of eight books and is published in Portugal, Spain, France, Italy, England, United States, Argentina and Brazil. His novel The Tragedy of Fidel Castro won the USA Book Awards, his novel Jesus and Magdalene won the Indie Reader Book Awards.
0 Comments
Your comment will be posted after it is approved.
Leave a Reply. |
The Ekphrastic Review
COOKIES/PRIVACY
This site uses cookies to deliver your best navigation experience this time and next. Continuing here means you consent to cookies. Thank you. Join us on Facebook:
September 2024
|